A cartoonista Vilma Vargas é acusada de racismo e de "violência gráfica".

 

Imagine desenhar uma banda desenhada sobre um caso de corrupção de proporções bestiais que envolve juízes, polícias, políticos, jornalistas e muitos estratos da sociedade e do governo do seu país e acabar por ser acusado de intromissão na vida íntima do procurador, de"violência gráfica", de racismo e de tantas outras coisas feias. Foi exatamente isso que aconteceu a Vilmatraca.

Admito que a questão da "violência gráfica" me apanhou desprevenido e, nesta fase do filme, não estava à espera de um novo subterfúgio tão absurdo para criminalizar o humor gráfico.

No dia 26 de março, a cartoonista equatoriana Vilma Vargas Vallejo, "Vilmatraca" (Riobamba, 1978), publicou esta imagem na sua conta do Twitter(X), como é seu hábito. Vilma costuma receber muitas interacções sempre que publica um cartoon, e este não é exceção.

Para compreender o contexto da banda desenhada, a cena faz alusão a conversas publicadas pela Procuradoria-Geral do Equador, que podem ser consultadas aqui, relacionadas com o caso "Metastasis" sobre delitos de criminalidade organizada.

Contexto, caso de metástases

De acordo com Diana Salazar, a equipa da Procuradoria-Geral da República apelidou o caso de"Metástase ", em que estão a ser investigados crimes de criminalidade organizada"porque a corrupção é um cancro que não ataca apenas o sistema judicial, mas também afecta várias áreas da sociedade, como a Polícia Nacional, os políticos e até a comunicação social".

Leandro Noreno Tigua, conhecido como"El patrón", era considerado um dos principais traficantes de droga do país e era também acusado de ligações ao Cartel de Jalisco - Nova Geração ( CJNG).

Após o seu assassinato no Centro de Reabilitação Social de Cotopaxi (prisão de Lacatunga), em 3 de outubro de 2022, a investigação da Procuradoria-Geral da República obteve vários elementos de prova, incluindo os telemóveis com os quais o agora falecido e alegado líder de uma organização criminosa dedicada, entre outras actividades ilícitas, ao tráfico de droga, tinha montado a sua estratégia para escapar à justiça com o apoio de um grupo estruturado para esses fins.

Este grupo heterogéneo inclui políticos, polícias, juízes, procuradores, funcionários do Conselho Superior da Magistratura e do SNAI, funcionários prisionais, advogados, empresários e jornalistas. A lista das pessoas processadas está disponível no sítio Web do Ministério Público.

Compreender a banda desenhada

Demorei várias horas e várias consultas, tanto para compreender a banda desenhada como as reacções. Também conversei com Vilma Vargas, que já conhecia este outro movimento. Mesmo assim, não excluo que o meu distanciamento (não só geográfico) possa ter-me levado a cometer algum erro involuntário. De qualquer forma, espero que essa distância também tenha contribuído para que eu fosse um pouco mais assético.

Na cena, o autor recria uma fotografia, divulgada na altura pelo deputado Fernando Villacencio (assassinado em 2023), de algumas das pessoas envolvidas no caso Metástase a tomar banho na piscina de uma casa em Miami, propriedade de Xavier Jordán, processado num esquema de corrupção no Hospital Teodoro Maldonado Carbo durante a pandemia e que está também ligado a Leandro Norero.

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Da esquerda para a direita e de cima para baixo estão o jornalista que divulgou um dos casos, Anderson Boscan, os mafiosos, o ex-presidente Guillermo Lasso e o seu cunhado, o ex-presidente Rafael Correa apoiando o seu político Rony Aleaga, a procuradora Diana Salazar apoiando o ex-presidente Lenin Moreno numa cadeira de rodas. Em baixo, Jaime Nebot (de bigode) a apoiar o seu político Pablo Muentes, os advogados que ajudaram os narcotraficantes e outro jornalista, Carlos Vera (de boia), acusado de ocupar um escritório de um dos advogados envolvidos, Bibian Hernández, atrás de óculos.

Por último, o atual presidente, Daniel Noboa, atirou notas para o ar em alusão a uma alegada "farra" em Madrid, algo que o governo negou. A este respeito, é de acrescentar que o meio de comunicação social espanhol "El Debate", promovido pela Associação Católica de Propagandistas, de onde saiu esta suposta informação, para não dizer outra coisa, não fornece fontes concretas nem documentação audiovisual que confirme o que é relatado.

O cenário de discórdia

A Procuradora-Geral da República, Diana Salazar, que está a julgar este caso, também aparece na banda desenhada porque um dos envolvidos, Rony Aleaga, afirmou que teve uma relação íntima com ela. A Procuradoria-Geral da República classificou as afirmações de Aleaga como uma"nova campanha de difamação" contra a sua directora, com o objetivo de desviar a sua atenção.

Vilma não fez mais do que um exercício satírico com essa situação ao retratar Aleaga, de onde emerge o coração de um amante, enquanto agarra o promotor pelo tornozelo.

A cartoonista Vilma Vargas é acusada de racismo e de "violência gráfica". 2

"Violência gráfica

Devido à forma como a procuradora foi mostrada, a ONG "Participación Ciudadana" recortou essa parte da ilustração, retirando todo o contexto e significado da banda desenhada, com o objetivo de colocar Vilma Vargas num saco de racismo e "violência gráfica", mostrando o recorte juntamente com insultos e comentários racistas.

Lendo a mensagem da Participación Ciudadana, poder-se-ia pensar que Vilma, em vez de ter feito uma piada sobre a corrupção, cometeu um crime contra a humanidade.

O diretor deste coletivo chama-lhe"manifestações violentas".

E, claro, todos sabemos que um comentário tão quente, no calor do momento, tende a ter um "efeito rastilho" imediato e, uma vez aceso, é difícil que não acabe por explodir sobre alguém. Assim, Vilma tem recebido uma boa quantidade de insultos diversos e alguns utilizadores já carregaram as suas fotos para escrever comentários mais agressivos e ameaçadores. Tuiter no seu estado mais puro de tochas ao vento, escusado será dizer como estas coisas tendem a escalar.

O autor fala

Vilma Vargas considera que "como a procuradora é afro-descendente, o desenho foi classificado como racista, dando a entender que a desenhei num fato de banho com estampado de animais para sugerir que pretendia que Diana Salazar fosse vista como um 'homem das cavernas ou um primata', o que não é verdade".

"A estampa no seu fato de banho não é mais do que um recurso para aludir ao trabalho do procurador no caso Leon de Troya, daí a estampa de pele de Leão, que não é a primeira vez que a utilizo numa banda desenhada sobre o caso, como se pode ver nesta outra banda desenhada publicada em setembro de 2023".

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Vilma Vargas. setembro de 2023

Vilma recorda que"no país, a cada 26 horas, uma mulher é assassinada, na América Latina 7 em cada 10 mulheres sofreram algum tipo de violência, mas, como vêem, sentem-se mais ofendidas por um desenho do que por esta realidade em que vivemos" e acrescenta que"esta ONG devia ter uma lista de como devem ser feitas as caricaturas políticas no Equador".

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O humor em apuros, uma coleção de casos
Casos de cartoonistas que tiveram problemas de alguma importância devido aos seus cartoons ou ilustrações satíricas. Há também algumas histórias de outras pessoas que, sem serem cartoonistas, se meteram em problemas por as partilharem.

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